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"Escolhe um trabalho que ames e não terás que trabalhar um único dia da tua vida". As palavras são de Confúcio, mas o lema é dos Linda Martini. Uma história de dez anos, um novelo inicialmente ligado pelo hardcore e agora completamente desembrulhado por Turbo Lento. Não houve ordem de despejo da Casa Ocupada. Foi dentro dos seus quatro cantos que engendraram e aprenderam a amar esta lentidão do turbo. Chega-nos um disco suado, equilibrado e racional.
Turbo Lento é uma viagem de avião: ora estamos a tomar a bebida que a hospedeira de bordo nos serviu, enquanto folheamos o livro ou a revista, ora recebemos a ordem do comandante para recolocar os cintos e não nos assustarmos com a Turbo Lência que aí vem. Da bonança à tempestade, e vice-versa, o turbo é omnipresente, apesar das suas oscilações de intensidade: cada um dos quatro tem um controlo remoto no bolso. A viagem começa com uma descolagem de dois minutos e dois segundos, tempo que dura "Ninguém Tropeça nos Dias". Esta é uma faixa de aquecimento, estrategicamente construída para emoldurar o resto do álbum, que não terá outro momento cem porcento instrumental depois deste. Eis um ajuste no mecanismo basilar de Linda Martini (que vem no seguimento do que foi inaugurado em Casa Ocupada): acabaram-se as febres de melancolia que duravam mais de sete minutos.
Em Turbo Lento, a descoberta da voz foi a descoberta da pólvora. De lado fica a essência mais contemplativa de Linda Martini, que é substituída pela permeabilidade das letras. André Henriques esganiça mais que nunca e o que lhe sai tem conteúdo. Depois da descolagem, "Juárez" é o primeiro momento caótico, a primeira briga, o primeiro olho negro. A culpa é das guitarras dissonantes e do crepitar infernal das cordas. "Panteão" e "Pirâmica" voltam a afrouxar os ânimos, com uma toada mais bucólica, onde a pauta se torna mais legível. A seguir a um fade out mais prolongado, é expectável que se dê uma explosão. Tudo pode mudar numa questão de segundos: é essa a incerteza que nos assola quando andamos de avião; é essa a legenda de Turbo Lento.
Em "Sapatos Bravos" e "Febril", ambas com muitos vestígios de "Mulher a Dias" e "Cem Metros Sereia" (Casa Ocupada), encontramos a maior demonstração de qualidade musical deste novo disco. Num sobe e desce infinito, marcado pelas quebras súbitas de ritmo, estes dois temas dão-nos espaço para refletir, para apreciar, para nos deixarmos convencer. O sangue ferve mesmo com a chaga que Chico Buarque inscreve em "Febril", através dos versos de "Tanto Mar", um hino à liberdade de abril. Com um início a fazer lembrar as cenas dos westerns em que os cowboys se defrontam, "Tremor Essencial" cheira quase a balada. No fundo, é uma estrutura complemente oposta à de "Juárez". "Tremor Essencial" fala-nos - se quisermos fazer esta leitura - do percurso ascendente de Linda Martini. As palavras, escritas pelo filho de André Henriques, são afiadas: «Não queiras ser como toda a gente, não queiras crescer de repente».
"Ratos", primeiro single, é o tema mais comercialeco, o único com um esqueleto pop, que acaba por destoar do resto do álbum. O ADN de Linda Martini é novamente recuperado em "Aparato" e "Tamborina Fera", com grandes descargas de energia, tanto pela distorção, como pelo berrar uníssono que é atributo já antigo do quarteto português. Foi o início da descida, a perda de altitude, o alvoroço final. Primeiro as rodas traseiras e só depois a da frente: a aterragem é feita ao som de "Volta". Um fecho introspetivo, que dá as mãos a "Ninguém Tropeça nos Dias", em jeito de espiral. É como aterrar o avião de forma a que ele fique a postos para nova descolagem. Um álbum feito para tocar em loop e próprio para concertos dignos de grandes salas, largos palcos e públicos fanáticos.
Turbo Lento tem conta, peso e medida. Não é um hiato, não é um cordão umbilical que se corta. É um trabalho lapidado que, por um lado, prorroga algumas das marcas registadas de Linda Martini e, por outro, instaura novos rendilhados, novas manias. Turbo Lento é menos directo que Casa Ocupada, mas mais completo. Hélio Morais esgueira-se dos holofotes e não se faz ouvir tanto, talvez por se estar a guardar para as prestações ao vivo. As palavras, as guitarras e as linhas de baixo de Cláudia Guerreiro são agora mais nítidas. Esta é também uma nova página na história decenária dos Linda Martini, uma vez que assinaram pela primeira vez com uma major, a Universal.
Mais guitarras, mais rasgadelas, mais distorção e mais efeitos vocais só podem resultar em mais barulho. Porém, este é um dos casos que revoga a teoria que diz que o barulho é ruído ou confusão. Origins, novo álbum dos God is an Astronaut, foi esta quarta-feira apresentado no TMN ao Vivo, em Lisboa. Ao contrário do que é habitual nas actuações dos irlandeses, desta vez não houve direito a projecção. Também não foi isso que os impediu de proporcionar um abalo sísmico, de alta magnitude, durante hora e meia. Uma autêntica viagem ao espaço.
Até certo ponto, consegue perceber-se o porquê do cepticismo em torno de bandas de cariz instrumental. Ainda assim, ver God is an Astronaut ajuda a deslindar este mito. É verdade que não temos o mapeamento das letras, nem a sugestividade que a riqueza tímbrica impregna, mas a comunicação musical não se pode resumir a isso. A adaptação leva o seu tempo, no entanto, damos por nós a interpretar a mensagem veiculada nos riffs e nas dinâmicas da banda irlandesa. A gradação das intensidades rítmica e sonora incumbe-se de fazer o trabalho que é, por norma, encargo das letras. De repente, em combinações de acordes, começamos a ler palavras, frases, estórias.
À medida que nos mostravam Origins, iam revisitando os álbuns mais antigos, com especial insistência em All is Violent, All is Bright. "The Last March", "Calistoga", "Transmissions", "Exit Dreams" e "Reverse World", temas do novo disco, testemunharam acerca da magia infinita dos sintetizadores e dos vocoders. Melodia e voz são constantemente filtradas, obtendo-se um som profundamente ficcional. O experimentalismo é a pedra-de-toque de Origins. É possível serrar presunto e partir a loiça toda com classe e etiqueta. Esta sonoridade é um corpo em que cada membro ganha vida própria. Mesmo com os novos níveis de distorção, os trechos são limpos e perfeitamente detectáveis. Por essa razão, não há qualquer promiscuidade. Eis o post-rock mitigado (sem nunca deixar de o ser) dos God is an Astronaut.
O público delirou com temas como "All is Violent, All is Bright", "Fragile" e "From Dust to the Beyond", esta última propositadamente embrulhada e dedicada aos presentes. Apesar de raras vezes vermos as suas caras, cobertas pelos longos cabelos que esvoaçavam em harmonia, o quinteto irlandês não escondeu a sua identidade marcadamente compadecida e até espiritual. Contaram-nos, por exemplo, que "Forever Lost" havia sido escrita em 2003, em homenagem a um ente próximo que partira. A maioria dos temas tem a particularidade de sondar emoções, sensações e pensamentos. As semelhanças da estrutura musical de God is an Astronaut com a estrutura de um filme thriller não se perderam em Origins, apesar de mais diluídas. A frase «Isto está calminho demais para o meu gosto» é quase sempre seguida da «Devia era ter estado calado».
Perto do final, Torsten Kinsella (vocais e guitarra) puxou dos galões e gritou: «Queremos ver-vos enlouquecer!». Desde então, a plateia soltou-se. À boa maneira dos astronautas, os saltos constantes pareciam enunciar uma gravidade zero. Pediram-nos que posássemos para a foto e agradeceram em bom português. A noite terminou com "Route 666".
Fotografias por Débora Lino.
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