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Domingo, 22.09.13

Festival Caixa Alfama: Como ficar a gostar de fado em dois dias

Depois de uma noite em que os timbres portentosos e opulentos foram cartão de visita , a segunda noite do Festival Caixa Alfama trouxe-nos um perfume menos activo, mas daqueles que fica na roupa durante muito tempo. Um perfume cuja essência se baseou em três elementos: a amabilidade de Raquel Tavares, a frescura de Cuca Roseta e a alegria de António Zambujo. Para infortúnio do espectáculo, ontem o Palco Caixa não teve casa cheia e a contenção do público foi superior à da noite anterior.

 

Festival Caixa Alfama-4

Em momento algum, Raquel Tavares escondeu o seu bairrismo profundo, até porque sentiu que a plateia assinava por baixo de cada vez que o expressava. Afinal de contas, estava totalmente em casa e tinhas razões mais do que suficientes para andar à sua vontade. Para além de elevar constantemente o seu nicho alfamista às nuvens, a fadista mostrou grande reverência para com o público feminino, ao qual dedicou alguns dos temas entoados, procurando ao máximo a cumplicidade da sua assistência. Foi prazeroso ver a sua versatilidade, ao pegar na guitarra uma ou outra vez e aventurar-se sem o amparo dos seus músicos.

Festival Caixa Alfama-16

 

Aventureira também foi Cuca Roseta, que pôs os trunfos na mesa logo desde início, ao abrir a capella, curiosamente, com "Rua do Capelão". As palavras eram tão melosas quanto a sua voz angelical: viver abraçada ao fado, morrer abraçada a ti. Parecia maravilhada com o ambiente ao seu redor e reconheceu que «para os fadistas este é dos cenários mais bonitos do mundo para se cantar». Cuca Roseta foi transparente quanto à sua admiração por Amália Rodrigues, à qual dedicou um fado da sua própria autoria, a "Marcha da Esperança". De Amália, cantou "Porque voltas de que lei" e "Foi Deus", onde se tornaram bem perceptíveis a sua longura e afinação vocais. À semelhança da primeira noite, houve também oportunidade para desfrutar da individualidade instrumental. Num registo por vezes algo auto-biográfico, Cuca Roseta trouxe-nos um fado cujas composições lírica e melódica foram inteiramente da sua lavoura, o seu primeiríssimo fado "Nos teus braços". O momento ideal para algum enamoramento no seio do público.

Festival Caixa Alfama-23

 

António Zambujo foi o último a subir ao palco. Sim, já não restam dúvidas, é mesmo possível manusear a guitarra tão fluentemente e ter, simultaneamente, tão grande disponibilidade para cantar. De facto, "Algo Estranho Acontece" com este sujeito. Atrevido, sem ser grosseiro. Manso, sem ser monótono. Brincalhão, sem ser decadente. Não há como ficar inerte perante o lirismo dos seus versos. É sempre encorajador perceber que o público para o qual cantamos está atento às palavras que são proferidas. Ontem, isso aconteceu inúmeras vezes, que o testemunhem todos aqueles que soltavam uma gargalhada de cada vez que Zambujo dava por concluídas as suas narrativas musicais. É disso que se trata o seu fado: episódios consuetudinários, lengalengas apimentadas, idas ao confessionário. Zambujo não precisa de rimar para gerar concórdia. O seu arsenal é composto pelo sugestividade da aliteração e pela imprevisibilidade do vocabulário. Para o resultado ser estonteante, basta simplesmente adicionar uns gramas do seu sorriso glamoroso e cativante. 

Festival Caixa Alfama-41

 

Supreende-o mais a ele do que a nós o facto de o público dominar com distinção as letras das músicas: «Também sabem cantar esta?!», perguntou enquanto tocava "Lambreta". Brindou-nos com peças de um cancioneiro da velha guarda: Dá-me uma gotinha de água, dessa que eu oiço correr, entre pedras e pedrinhas, alguma gota há-de haver. E sacou-nos alguns assobios para abrilhantar "Eu ia pela Rua". Os ânimos acaloraram quando tocou "Flagrante" e "Zorro". Além da guitarra portuguesa e do contrabaixo, fez-se acompanhar dos clarinetes de José Miguel Conde e do trompete de João Moreira, que adocicaram ainda mais o seu fado. Um festival que terminou com chave de ouro. Venham mais!

 

 

 

Festival Caixa Alfama-37

 

Fotografias por Rita Sousa Vieira

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por ruionthehop às 15:30

Sábado, 21.09.13

Festival Caixa Alfama: Tivemos Alfama e tivemos o proveito

Festival Caixa Alfama-3

O Tejo estava mesmo ali à mão de semear. A lua batia-lhe, cuidadosamente, amarelando-o. E Lisboa cabia-nos dentro dos olhos, tanto que nem sabíamos por onde começar a fitá-la. "Aqui mora o fado". Era este o cenário do Palco Caixa, o palco principal do Festival Caixa Alfama, uma autêntica aldeia do fado. São dois dias de fado, com 40 fadistas, espalhados por dez palcos. Fica o sentimento de frustração por não nos podermos auto-clonar para assistir a todos os concertos. Ainda assim, foi gratificante ver tamanha multidão e tão raros os espaços por ocupar. 

 

Festival Caixa Alfama-6

Na noite de ontem, coube a Gisela João a tarefa de abrir o pano pela primeira vez. Fê-lo de forma exímia, graças ao seu timbre imperial, que constrastava por completo com o tom mais ameninado das palavras não cantadas. Durante cerca de uma hora, a jovem fadista fez do corpo uma extensão das cordas vocais: aquilo que estas não conseguiam transmitir autonomamente, o corpo encarregava-se de o ilustrar. Ajoelhava-se, dava sapatadas no estrado, cerrava os punhos com um olhar felino. Não demorou muito tempo para que se desfizesse dos saltos altos: «desculpem, mas sinto-me desconfortável». Ficou atónita, e até sem jeito, pela forma como o púbico se mostrava empolgado com a sua atuação. Arrancou, sempre que quis, as palmas tricompassadas que o fado corridinho tanto exige. "Viva Alfama!", exclamou na despedida. Nota nove, de zero a dez. 

 

Festival Caixa Alfama-21

Ana Moura levou-nos aos fados, onde nós sossegamos as desventuras do amor a que nos entregámos. O brio e o arrojo valeram-lhe as muitas ovações e a participação do público em vários refrães, como foi o caso dos "Búzios", a peça que faltava a um puzzle que já contava com o aroma fresco da maresia. Na maioria dos casos, a diferença não tem que ver com o ser-se bom ou mau fadista, porque, felizmente, maus fadistas não temos. Depois, os bons são subdivididos em dois: os que causam arrepios e os que não causam. Com Ana Moura, nem a pele dos mais insensíveis está a salvo. Deixa-nos com o coração nas mãos, das vezes que coloca a voz quase ao jeito da perene Amália. «Finalmente alguém tem a ideia de fazer um festival com este conceito», disse em homenagem a Luís Montez, da Música no Coração. Mais tarde, ausentou-se por instantes, deixando-nos com um momento instrumental, também ele arrepiante, onde a guitarra portuguesa de Ângelo Rodrigues arrebatou a plateia. É claro que o "Desfado" estava reservado para o final. Ana Moura quase não teve de pegar no microfone. A multidão identificou-se com a composição bipolar e antitética de "Desfado".

 

Festival Caixa Alfama-22

Com uma toada mais monocromática e menos aparatosa, Camané fechou a noite, debaixo dos aplausos de um público que, perto do fim, já mostrava sinais de alguma sonolência. Culpa da hora avançada, nunca do aguerrido Camané. Confessou desde cedo que não tinha por hábito cantar temas já antes protagonizados por grandes nomes do fado. «Já não há nada a acrescentar», afirmou humildemente o fadista lisboeta. Ainda assim, pediu licença para entoar palavras emprestadas de Amália e também do poema "Presságio", de Pessoa Ortónimo. O amor quando se revela não se sabe revelar. Desfilou a sua já longa experiência, sempre destacando a excelência dos músicos que trouxe consigo. Nas bancadas alguém gritava por "Sei De Um Rio". Camané ainda disfarçou uma despedida, mas regressou prontamente e fechou mesmo a cantar o rio em que as únicas estrelas nele sempre debruçadas são as luzes da cidade. Esse rio foi o Tejo e as luzes emanavam de Alfama. 

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por ruionthehop às 12:47

Terça-feira, 10.09.13

Arctic Monkeys e a AMputação do passado

Só há duas maneiras de dizer isto. Uma é: os Arctic Monkeys assinaram o Tratado de Tordesilhas. O mapa-múndi dos britânicos passa, agora, a ter uma configuração bifurcarda. A leste de Sheffield, os domínios estão entregues aos álbuns Whatever People Say I Am, That's What I'm Not (2006), Favourite Worst Nightmare (2007) e Suck It And See (2011). Nos territórios a oeste de Sheffield, a hegemonia está nas mãos de Humbug (2009) e, claro, do recém-nascido AM (2013), um disco "West Coast" que, no fundo, condensa R&B e riffs. Uma fórmula arriscada, mas quimicamente notável. A outra maneira é: os primatas de que Charles Darwin falava na sua Teoria da Evolução eram, afinal, os macacos do ártico. O seu primeiro modo de locomoção era feito com recurso aos quatro membros. A espécie evoluiu e no ano de 2013 aperfeiçoou o seu bipedismo. 

 

De 2009 em diante, Josh Homme, frontman dos QOTSA, revolucionou o processo produtivo do quarteto de Sheffield, provocando esta cisão de que falei acima. Na concepção dos álbuns da metade leste do novo globo, o trabalho de estúdio foi no sentido de afunilar o comportamento musical para o estilo pelo qual a banda se tornou célebre, equanto que, os álbuns da metade oeste se desviam desse afunilamento. De certa forma, Suck It And See é marcadamente anacrónico: seria mais lógico que tivesse antecedido Humbug, em vez de o suceder. O que motivou esta evolução foi o simples facto de os Arctic Monkeys se terem consciencializado de que conseguiram fidelizar o seu público. Ora, com o público na palma da mão, façam o que fizerem e toquem o que tocarem no futuro, já não deixarão de ser os Arctic Monkeys. Por outro lado, não podem ficar perplexos se a decisão que tomaram for alvo de controvérsia. AM é de difícil digestão. AM requer um exercício hermenêutico por parte dos ouvintes, implica investimento de tempo e, acima de tudo, condescência suficiente para aceitar a mudança. Sou o primeiro a assumir que as primeiras impressões de AM podem ser decepcionantes. Mas, neste caso, não podemos deixar que as primeiras impressões ditem o nosso juízo final. 

 

Economizou-se nos floreados, apostou-se mais no vazio instrumental temporário. A voz de Alex Turner é mais frequentemente forçada à solitude, abrindo-se-lhe as portas para resplandecer. Os riffs são mais ponderados, arrastados em vez de efémeros. Privilegia-se a repetição, sacrifica-se a diversidade. Os níveis de distorção caem drasticamente. O resultado é um som mais sóbrio, mais equalizado e, curiosamente, mais melancólico. A somar a isso, não passa despercebida a desaceleração significativa das baquetas de Matt Helders (baterista) sobre o prato de choques. Basicamente, resume-se a isto: até ao último álbum, os britânicos iam a conduzir em autoestrada, dando à vontade uns 180km/h; em AM, optaram por evitar portagens e enveredaram pela estrada nacional, onde vão agora a uns tranquilos 90km/h. Esta é a chave para a proliferação da balada na nova cena musical de Arctic. Este disco está apejado de construções unidirecionais, onde o que mais importa é canalizar a sensitividade de cada tema. Cheios de intencionalidade, os Arctic Monkeys criaram músicas em que é constante a sensação de que vai acontecer alguma coisa, surgir um clique, uma estrofe mais movimentada. Não acontece nada. É assim do início ao fim. E ainda bem. Fazer coisas complexas é mais fácil do que as fazer simples.

 

"Do I Wanna Know?", "One For The Road" e "Knee Socks" são exemplos-mor da estrutura monolítica experimentada em AM. Esse tipo de estrutura é excepcionalmente colmatada com a introdução inequívoca dos falsetes concomitantes de Matt Helders e Nick O'Malley (baixista). A fase experimental não se fica por aqui. Turner já havia confessado que nos seus tempos de juventude era adepto de hip-hop, porém, só agora o pudemos conferir, especialmente ao ouvirmos "Why'd You Only Call Me When You're High?", "Arabella" e "One For The Road". Ao contrário dos restantes álbuns, AM (e, se quisermos, Humbug) não é tão dançável. Foi feito para ser degustado. "Mad Sounds" e "I Want It All" quase igualam alguns dos temas de Oasis. Turner usa e abusa do vocativo, através do qual, parte constantemente para o flirt, com composições com uma tónica promíscua e sensualizada. Composições que parecem querer reproduzir o diário que Turner guardava debaixo da cama durante a sua adolescência, que, convenhamos, não deve ter sido muito feliz. A realidade é sempre uma incógnita e a alucinação não é tão esporádica quanto isso. Tudo, porque um coração foi, ao que parece, seriamente trucidado. "I wanna be your vacuum cleaner, breathing in your dust", palavras-chave do slow "I Wanna Be Yours", última faixa do álbum. John Cooper Clarke é o autor do poema, mas Alex Turner encarna-o por completo. 

 

Na crítica a um álbum, fica sempre bem dizer que é muito melhor que todos os outros que foram editados antes. Não se trata de ser melhor. AM procura fugir à remasterização e inaugura um novo ciclo, uma nova identidade. Resta esperar para ver se a "divisão do mundo em dois" terá continuidade no disco seguinte ou se o tratado será rasgado. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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por ruionthehop às 23:17

Domingo, 01.09.13

Skunk Anansie: E o Jackpot vai para... o Crato!

A derradeira noite. O momento mais aguardado. Um recinto a rebentar pelas costuras. Eles vieram de Inglaterra. Estiveram 8 anos separados, desde 2001 até 2009. Senhoras e senhores, Skunk Anansie no Festival do Crato! A rouquidão foi certamente o resultado do diagnóstico pós-concerto. Um espetáculo de cortar o fôlego. Os céticos que se convençam: Skunk Anansie não foram areia a mais para o camião do Crato. Areia na proporção certa para um camião na potência máxima. A presença de britânicos no recinto não passou despercebida, dado o incremento do número de copos de cerveja espalhados pelo chão.

Mal o pano se abriu, os olhares convergiram todos para a vocalista Skin. Outra coisa não seria de esperar. A britânica foi caprichosa na altura de investigar o guarda-roupa. O traje espampanante emprestou-lhe umas certas feições do bonequinho da Michelin. Também cedo se desfez daquele peso porque precisava de liberdade para pôr cá para fora toda a energia. Conseguem imaginar uma retroescavadora com formas humanas? Eu também não conseguia. Até ontem. Ainda nem se tinham passado dez minutos e já ela andava a mergulhar na multidão como se esta fosse um insuflável. Dessa vez, o insuflável ainda estava em processo de enchimento e Skin teve de pôr a marcha a trás.

«Vocês são absolutamente fantásticos», disse. O Crato nunca tinha saltado tanto como ontem. "This is not a game" e "Yes it's fucking political" provocaram o tumulto total. Skin estava sorridente e, ao mesmo tempo, enraivecida. Em dados momentos, dava a sensação que queria desabafar com o público português. Se calhar, foi por isso que voltou à carga com mais um crowd surfing. Agora sim, o insuflável estava bem fornecido de ar. Ela deleitou-se. E as mãos deles tiraram proveito, claro. Pelo andamento das coisas, "Hedonism" foi um tiro certeiro. De facto, o Crato levou um banho de hedonismo, ao qual nem os mais velhos escaparam.

«Portugal, vocês já tiveram o suficiente?», perguntava ela, já sabendo perfeitamente a resposta. O "não" gritado em inglês foi ensurdecedor. Era chegada a hora do terceiro crowd surfing. Desta feita, a confiança nos braços portugueses já estava cimentada e ir deitada na prancha não lhe aguçava a adrenalina. Toca a trepar a malta e passear um bocadinho a pé por cima de umas cabeças e ombros. É claro que até lhes podia causar dores de morte, mas o semblante empolgado e as interjeições de gáudio disfarçavam-no com distinção. E ela de certeza que caiu. Isto é, caiu na artimanha porque no chão ninguém permitiu.

No meio disto tudo, o que mais embasbacou nem foi o show off de Skin, mas sim a facilidade com que continuava a escancarar os maxilares, de uma flexibilidade tal, que chegava a parecer que nos queria devorar. Como quem não quer a coisa, Skin mete a mão ao bolso e saca instintivamente três ou quatro oitavas, sempre a agudizar. E isto, fazia-o tanto em palco, parada, como na turbulência dos crowd surfing's. O ar endiabrado e a rispidez das cordas vocais foram apanágio de uma atuação inqualificável, que o Crato não vai esquecer tão cedo. Quando voltou ao palco para o encore, cantaram-se os parabéns a Cass, baixista que também esteve em grande destaque durante o concerto. Como tributo ao público pelo seu comportamento exemplar, Skin desembrulhou "Follow me down", irrompendo pelo meio da multidão como se de Moisés se tratasse. Jackpot!

Fotografias por: Débora Lino

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por ruionthehop às 16:27


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