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Campinas é o quartel-general de Portugal no Brasil e o Coliseu dos Recreios foi o quartel-general do Brasil em Portugal. Foi lá que, ontem à noite, uma parte do país esteve de olhos postos na seleção musical de qualidade. O fadista Marco Rodrigues deu o pontapé de saída e fez tabelinha com Maria Gadú, que balançou as redes. Uma final falada em português.
Provavelmente, poucos dos que compraram ingresso para assistir ao concerto de Maria Gadú estariam a par da comparência de Marco Rodrigues. Talvez por isso mesmo a surpresa tenha sido tão agradável. Com um fado versátil e perto do ponto-de-rebuçado, o músico português cativou por completo o público, que respondeu com grandes doses de aplausos e sorrisos. Mesmo com um Coliseu pouco vestido, Marco Rodrigues cantou com alma e afinação, bem acompanhado pelo brio da guitarra portuguesa.
Durante o intervalo, Maria Gadú ia sendo aclamada pelas vozes ansiosas que ecoavam da plateia. A expectativa era grande demais para um início que se veio a revelar algo dececionante. A cantautora brasileira entrou de mansinho, como se nada fosse com ela, e os problemas técnicos também não lhe facilitaram a tarefa. “Bela Flor” foi cantada de forma tão cinzenta, que quase murchava. Mas, pelos vistos, tudo o que é mau também acaba depressa. Foi a partir de “Extranjero” que Gadú, qual desfibrilhador humano, começou a reanimar os corações do público. Apesar do castelhano meio abrasileirado, a ternura do tema superou qualquer barreira linguística.
Muito bem representado na assistência, o povo brasileiro fez-se ouvir através de alguns “Txi amo” dirigidos a Maria Gadú. Cheia de bom humor, a artista respondeu com uma anedota: «O príncipe disse à princesa: ‘Txi amo, tá?’. A princesa respondeu: ‘Tá, qualquer coisa eu txi aviso’». A vaga de boa disposição prosseguiu, mesmo quando o dedo de Gadú foi ferido pelo aço das cordas da sua guitarra. A seguir, ficámos com “Tudo Diferente”, uma autêntica canção de embalar, ornada pelo timbre rasgado da brasileira.
Convidada por Maria Gadú, Mara Andrade subiu ao palco para dar o seu contributo em “Dona Cila” e “Ne me quite pas”. A grande cumplicidade entre Gadú e a cantora cabo-verdiana não passou despercebida perante uma plateia rendida à harmonia de ambas as vozes. Um momento arrepiante. De arrepiar foi também o discurso amotinado de Maria Gadú, relativamente ao estado-de-sítio da nação brasileira, com especial crítica à organização do Campeonato do Mundo de Futebol: «A saúde e a educação são os pilares da existência. O restão são dores de cabeça que a gente inventa». As palavras deram o mote perfeito para o tema seguinte. “Filosofia” foi um chuto na bunda de Dilma Rousseff.
Maria Gadú fez questão de salientar a influência de Cazuza na sua carreira musical. “Medieval” e “Malandragem” foram alguns dos temas da composição do escritor brasileiro a ser cantados. Já o fadista Marco Rodrigues estava de regresso ao palco, desta vez, para cantar ao lado de Gadú. Juntos, protagonizaram “Valsa”, em mais um momento comovente e de grande amizade. «É um privilégio ter nascido num país que fala português. Eu amo cantar esta língua. É muito bom sair de casa e vir para casa», confessou a cantautora.
Num encore relativamente comprido, Maria Gadú deu oportunidade à sua banda de brilhar. Violoncelo, guitarra-baixo, guitarra elétrica, percussão e bateria, todos solaram de forma exímia. A noite fechou com os músicos a agradecer de pé a amabilidade do público. Começou a meio gás, mas acabou a todo o gás.
As mães estão sempre certas. Bom, pelo menos a mãe de Cícero Rosa Lins não poderia estar mais certa quando o batizou com um nome que significa “o que planta sementes”. Ele não só as planta, como as rega e faz romper. Ontem à noite, quem esteve no MusicBox para o ver, certamente regressou a casa com uma, ou mais, sementes no coração.
“Fuga nº3 da Rua Nestor” e “Vagalumes Cegos” foram as primeiras a ser lançadas à terra (e que latifúndio de gente era aquele!). Talvez seja preciso recuar um bom bocado na história para ver o MusicBox tão bem composto. Apesar da sua entrada de mansinho, Cícero não demorou para confessar que «é realmente impressionante tocar do outro lado do oceano». Para nós também foi realmente impressionante estar do outro lado do cenário, abrindo brecha ao feitiço lançado pela varinha do cantautor brasileiro. É impossível ficar-se-lhe indiferente.
Embora encontremos algumas diferenças entre “Canções de Apartamento” (2012) e “Sábado” (2013), em particular no que toca à extinção dos agudos na passagem do primeiro para o segundo, não conseguimos dizer qual dos dois álbuns nos delicia mais. A doçura é sintoma paradigmático em Cícero. Talvez por isso, “Açúcar ou Adoçante” tenha sido, com grande probabilidade, o melhor momento da noite de ontem. Dizemos “com grande probabilidade” porque não há como contornar o requinte de “Porta, Retrato” e de “Tempo de Pipa”.
Cícero decreta as fronteiras que distinguem uma voz repleta de musicalidade da chamada “grande voz”. Aliás, não só a voz. Todo ele emana essa musicalidade. Basta perder dois ou três minutos a observar a expressividade das suas caretas, os trejeitos carregados das sobrancelhas e o espírito profundamente absorto que enverga ao cantar. Os bordões da guitarra são um dos princípios da sua fórmula. O arpejo e o dedilhado são invariavelmente simples, mas suficientemente arrebatadores. Esta é a base. O resto fica ao critério da distorção q.b., do batuque versátil, do baixo discreto mas fundamental e dos keyboards escrupulosos. As sementes de Cícero atingem facilmente o ponto-de-rebuçado.
Ao contrário daquilo a que o MusicBox nos tem habituado, o jogo de luzes praticado no concerto de ontem foi determinante para a criação de uma atmosfera sem mácula. Para ela, contribuiu também o sorriso nada amarelo de Cícero, que, apesar de pouco interventivo, foi sempre carismático e afável. «Estou nervoso mas estou bastante feliz», atirou, arrancando uma ovação do público. Estava com tanto receio de nos aborrecer, que até nos pediu autorização para tocar «só mais uma calminha». Calminhas ou mexidas, as suas músicas revelam, acima de tudo, um equilíbrio invulgar. Mesmo quietos e expectantes, estamos em constante estupefação perante a ternura da sua sonoridade.
«Quando você voltar para casa, pequena, não há tristeza que valha a pena.» Venham mais destes.
Fotografias de Débora Lino.
Um ano e meio depois, os Norton estão de volta aos palcos. E voltaram para ficar. Contrariamente ao que é habitual, o típico álbum homónimo não coincidiu com a estreia do grupo em estúdio. "Norton" é já o quarto disco da banda portuguesa e foi, no sábado passado, apresentado pela primeira vez aos fãs, no Teatro do Bairro, em Lisboa. Sempre em terra firme, longe de grandes devaneios, mostraram-se felizes por "regressar à estrada", proporcionando um concerto que, como as moedas, teve duas faces. Além de composto, o Teatro do Bairro esteve bem disposto, ainda que com algumas intermitências de energia.
Com toda a certeza, ter problemas técnicos não era o cenário que os Norton idealizavam para um regresso tão importante quanto este. Nada que não se ultrapassasse com ajuda da boa disposição do vocalista Pedro Afonso, que de imediato apresentou as suas desculpas ao público. Apesar de não ter engatado à primeira, "Layers" abriu o concerto de forma promissora, talvez por ser umas das melhores músicas do portefólio dos albicastrenses. Este limbo entre final de inverno e início de primavera já foi o suficiente para deixar praticamente todos os membros da banda a pingar suor. O Teatro do Bairro também arregaçou as mangas e refugiou-se no fresco da cerveja e da bebida espiritual. Depois de darem umas pinceladas no álbum anterior, rasgaram finalmente o plástico de "Norton", ao entoarem "Magnets", cuja letra parecia já ser dominada por alguns elementos do público.
Como dissemos antes, não se aventuraram por caminhos pantanosos, mas foram sempre firmes e acutilantes, revelando muito trabalho de casa. O registo de Norton não é propriamente versátil, tampouco imprevisível, mas funciona como um todo ligado pelas suas partes. Coesão talvez seja a palavra de ordem. Assim o é nos seus álbuns, assim o foi nesta atuação. Músicas, na generalidade das vezes, muito diretas, sem altos e baixos, mas de rápida digestão. Não é fácil encontrarmos uma faixa brilhante - seja neste álbum, seja nos restantes -, mas é também tarefa complicada encontrar-se uma a que possamos chamar de "má" ou "fraca". Por isso mesmo, os concertos de Norton não nos levam à loucura, mas dificilmente desiludem.
Tivemos um primeiro momento, onde o conjunto português estava ainda visivelmente entorpecido, talvez até com alguma ferrugem, o que é perfeitamente compreensível. Esse primeiro momento terminou quando chegou o "Two Points", primeiro single de "Layers of Love United", de 2011. Pedro Afonso aproveitou a envolvência do público com o tema para quebrar em definitivo a monotonia para que se estava a caminhar a passos largos. Desceu do palco e invadiu a plateia, oferecendo o microfone às vozes que cantavam "Turn it up, turn it down, turn it all around" com entusiasmo. Daqui em diante, a história foi outra: mais alegria, mais genica, mais entrega. O auditório percebeu isso e respondeu da melhor maneira, culminando nas preces bem audíveis, aquando da saída de cena dos Norton: "Só mais uma, só mais uma!". Eles voltaram e fecharam com Directions, um instrumental indicado para momentos de reflexão (sugerido pelo próprio vocalista), e Coastline.
O Santiago Alquimista, em Lisboa, recebeu na noite passada o Balcony TV Sessions, num espetáculo dedicado, por inteiro, ao Hip-Hop Tuga. Apesar de inicialmente previsto para as 22:00h, o primeiro concerto acabou por só arrancar por volta da meia-noite, altura em que Skills & The Bunny Crew subiram ao palco. O evento foi transmitido em direto pela Balcony TV.
Após cinco anos de trabalho, o álbum de estreia de Skills & The Bunny Crew, Musa de Guerra, está finalmente pronto para apresentação ao público, a concretizar-se no próximo dia 19, no B.Leza. Ainda assim, ontem à noite, já pudemos levantar ligeiramente o véu e perceber parte da essência versátil do quarteto português. Na verdade, é essa versatilidade a pedra-de-toque de um hip-hop mitigado, fruto da fusão de outras subculturas musicais, com destaque para o rock e o funk. Talvez lhe possamos chamar hip-hop da pesada. Rotulações à parte, o certo é que esta malta deu provas de uma enorme apetência musical, fundada em linhas de baixo magistrais, pela destreza e domínio total da técnica de slapping por parte de José Garcia; e em altas descargas de energia a emanar da guitarra de Pedro Mourato, que cumpre a árdua tarefa de almofadar a parte melódica.
O vocalista Alfredo Costa esteve seguro e procurou sempre interagir com a plateia, que, apesar de tímida, foi respondendo bem aos seus apelos. Quem também ficou um tudo-nada tímida foi a legião feminina, muito por culpa da homenagem da banda respeitante ao Dia da Mulher. As rimas nem sempre foram perceptíveis, dado o peso dos instrumentos, mas, as que foram, revelaram o lado introspetivo e filosófico de Alfredo Costa.
Tekilla foi peremptório desde a sua entrada em cena, erguendo alto o estandarte do rap nacional. Acompanhado por um DJ Set rico em mixagens ruidosas, Tekilla, qual mestre-cerimónias, chamou todos para perto de si, clamando constantemente por “hands-up”. Deu a palavra ao público e o público escolheu Sinónimo, tema que canta com Sam The Kid. Durante a sua atuação, Tekilla trouxe ainda dois convidados ao palco e aproveitou para tecer algumas críticas aos artistas que recorrem ao playback. Articulou sempre bem as palavras, apesar da velocidade com que o fez.
A noite prosseguiu ainda com as atuações de XEG e NBC.
Chamem tudo ao homem, mas, por amor da santa, não digam que ele é "um cantor". JP Simões é o inventor da expressão "homem dos sete ofícios". É pôr-se-lhe um microfone na mão e deixar que faça o resto. Foi o que fizemos ontem à noite, no Cinema São Jorge. Sem remorsos. Não é nenhum Woody Allen, mas trouxe-nos “Roma”, o seu novo álbum, com muito amor.
A Banda Radioativa foi aparecendo às migalhas. Depois de um prelúdio inusitado e chorudo, JP Simões e Luanda Cozetti chegaram de braços entrelaçados. "O português voador" (não o português suave, do qual JP Simões tanta falta sentiu) arrancou os primeiros aplausos. Logo a seguir, da primeira vez que abriu a boca sem ser para cantar, JP Simões efabulou acerca do liberalismo económico e da iniciativa privada («Toda a gente aqui vai ter uma empresa de sucesso no futuro»), introduzindo-nos ao tema "Rio-me de Janeiro", um autêntico desfile carnavalesco.
Se intitulá-lo de cantor é menosprezar a sua versatilidade, dar o nome de concerto àquilo que protagoniza é, perigosamente, redutor. Mestre do stand-up, exímio na arte da sátira, doutor na ciência do multilinguismo, rodado nos saberes teatrais e dono de um vozeirão raro, Simões toureia-nos, no bom sentido, de início ao fim. Qualquer um fica abananado com os constantes abre-olhos que vocifera do palco. Mais atordoador que isso, é nunca percebermos se a linha de pensamento que segue foi cabulada ou se lhe saiu da cartola naquele instante.
Sacos de boxe havia-os às resmas. Ora o capitalismo, ora a publicidade, ora a corrupção, ora a demagogia: todos, de uma forma ou de outra, sentiram a inexorabilidade dos punhos de JP Simões. Para todas essas calamidades, Simões parece não encontrar outra saída se não o gosto em se “drogar e beber como um louco”. O propósito da sua irreverência também não é a busca de soluções, mas sim a aversão, a blasfémia e a renegação dos podres que apresenta. Como se as palavras não fossem o bastante, em “Gosto de Me Drogar”, pantomimou de forma esclarecedora.
“Roma” é uma salada-russa. E foi graças à sua orquestra extraordinária que JP Simões, sempre bem acompanhado pela voz açucarada de Luanda Cozetti, conseguiu transmitir essa mescla estilística. O jazz, com o toque samba, funk e afrobeat, aliado à variedade idiomática das composições (português do Brasil, “anglo-sexónico”, italiano espanholado e francês), encarrila-nos para uma quietude diferente do comum, semi-dançável, semi-qualquer coisa, mas nada taxativa. “Valsa Rancho”, de Chico Buarque, foi um dos últimos embalos da noite. Ainda viraram costas para sair, mas o público estava determinado e conseguiu que regressassem. Uma lufada de ar fresco.
Isto não é uma crítica a um álbum. Isto é um texto escrito propositadamente para fazer inveja a quem o ler. Cinco e meia da tarde de terça-feira, dezanove graus centígrados, a chuva já tinha dado um ar da sua graça e o Reflektor dos Arcade Fire estava à nossa espera, dentro de um carro. Sim, por mais insólito que possa parecer, o CD que a editora nos disponibilizou estava blindado contra piratas e só podia mesmo ser ouvido no leitor de um automóvel.
Saiu-nos a sorte grande, pensávamos nós. Àquela mesma hora, enquanto nos preparávamos para clicar no play do leitor de CD’s, certamente muitos estariam a vasculhar o calendário pela centésima vez, para confirmar se realmente ainda faltavam assim “tantos” dias para conhecerem o novo trabalho de estúdio dos canadianos. Confesso que a ganância nos subiu um tudo-nada à cabeça. Sim, também confesso que podíamos ter partilhado aquele momento com mais alguns, uma vez que restavam três lugares na parte de trás do carro. “Mas não era a mesma coisa”.
Cedo percebemos que Reflektor não era um álbum para ser rotulado, dada a sua elevada heterogeneidade estilística. Ainda assim, talvez possamos qualificá-lo como um álbum low-profile. Por outras palavras, Reflektor tem um âmago pouco explosivo, uma identidade reprimida, que parece travar uma luta constante para se desenlear. “Normal Person”, quinta faixa da primeira parte do disco, é um dos raros momentos em que o rock se aproxima do seu estado mais imaculado. De resto, tudo é aleatório, tudo é promíscuo, tudo é nómada.
A verdade é que nos deixámos enfeitiçar com muita facilidade, coisa que não deve ter passado despercebida às pessoas que, durante uma hora e vinte e cinco minutos, olharam para o interior do carro e se perguntaram o que é que aqueles dois malucos estavam ali a fazer. Nessas alturas, tivemos vontade de abrir os vidros e perder as estribeiras com o volume no máximo, qual discoteca ambulante. Mas era segredo. Em vez disso, pegámos numa folha e numa caneta e começámos a desenhar a palavra “ARCADE” e uma espécie de fogo em baixo.
Estar tanto tempo fechados num carro pode ter causado algumas alucinações, mas também nos trouxe alguma lucidez. Percebemos que, afinal, fazia todo o sentido ouvirmos este álbum, pela primeira vez, naquelas circunstâncias. Praticamente tudo à nossa volta era uma superfície refletora: as janelas, os retrovisores, as lentes dos óculos graduados, o ecrã da máquina fotográfica, até o próprio CD (já para não falar no colete refletor). Isso ajudou-nos a decifrar a fórmula de Reflektor. O novo disco dos Arcade Fire é um espelho que reflete várias influências, várias inspirações. É uma súmula da variedade e da imprevisibilidade.
A bateria de Jeremy Gara conhece novos terrenos, que se afastam do acústico e se aprochegam do digital. Raros são os riffs e a expressividade das guitarras. Por outro lado, abundam os samples do teclado. Sentimos um aroma a Pink Floyd, a Talking Heads e até a Michael Jackson. Se dentro de um carro foi bom, como será ao vivo e a cores?
"Escolhe um trabalho que ames e não terás que trabalhar um único dia da tua vida". As palavras são de Confúcio, mas o lema é dos Linda Martini. Uma história de dez anos, um novelo inicialmente ligado pelo hardcore e agora completamente desembrulhado por Turbo Lento. Não houve ordem de despejo da Casa Ocupada. Foi dentro dos seus quatro cantos que engendraram e aprenderam a amar esta lentidão do turbo. Chega-nos um disco suado, equilibrado e racional.
Turbo Lento é uma viagem de avião: ora estamos a tomar a bebida que a hospedeira de bordo nos serviu, enquanto folheamos o livro ou a revista, ora recebemos a ordem do comandante para recolocar os cintos e não nos assustarmos com a Turbo Lência que aí vem. Da bonança à tempestade, e vice-versa, o turbo é omnipresente, apesar das suas oscilações de intensidade: cada um dos quatro tem um controlo remoto no bolso. A viagem começa com uma descolagem de dois minutos e dois segundos, tempo que dura "Ninguém Tropeça nos Dias". Esta é uma faixa de aquecimento, estrategicamente construída para emoldurar o resto do álbum, que não terá outro momento cem porcento instrumental depois deste. Eis um ajuste no mecanismo basilar de Linda Martini (que vem no seguimento do que foi inaugurado em Casa Ocupada): acabaram-se as febres de melancolia que duravam mais de sete minutos.
Em Turbo Lento, a descoberta da voz foi a descoberta da pólvora. De lado fica a essência mais contemplativa de Linda Martini, que é substituída pela permeabilidade das letras. André Henriques esganiça mais que nunca e o que lhe sai tem conteúdo. Depois da descolagem, "Juárez" é o primeiro momento caótico, a primeira briga, o primeiro olho negro. A culpa é das guitarras dissonantes e do crepitar infernal das cordas. "Panteão" e "Pirâmica" voltam a afrouxar os ânimos, com uma toada mais bucólica, onde a pauta se torna mais legível. A seguir a um fade out mais prolongado, é expectável que se dê uma explosão. Tudo pode mudar numa questão de segundos: é essa a incerteza que nos assola quando andamos de avião; é essa a legenda de Turbo Lento.
Em "Sapatos Bravos" e "Febril", ambas com muitos vestígios de "Mulher a Dias" e "Cem Metros Sereia" (Casa Ocupada), encontramos a maior demonstração de qualidade musical deste novo disco. Num sobe e desce infinito, marcado pelas quebras súbitas de ritmo, estes dois temas dão-nos espaço para refletir, para apreciar, para nos deixarmos convencer. O sangue ferve mesmo com a chaga que Chico Buarque inscreve em "Febril", através dos versos de "Tanto Mar", um hino à liberdade de abril. Com um início a fazer lembrar as cenas dos westerns em que os cowboys se defrontam, "Tremor Essencial" cheira quase a balada. No fundo, é uma estrutura complemente oposta à de "Juárez". "Tremor Essencial" fala-nos - se quisermos fazer esta leitura - do percurso ascendente de Linda Martini. As palavras, escritas pelo filho de André Henriques, são afiadas: «Não queiras ser como toda a gente, não queiras crescer de repente».
"Ratos", primeiro single, é o tema mais comercialeco, o único com um esqueleto pop, que acaba por destoar do resto do álbum. O ADN de Linda Martini é novamente recuperado em "Aparato" e "Tamborina Fera", com grandes descargas de energia, tanto pela distorção, como pelo berrar uníssono que é atributo já antigo do quarteto português. Foi o início da descida, a perda de altitude, o alvoroço final. Primeiro as rodas traseiras e só depois a da frente: a aterragem é feita ao som de "Volta". Um fecho introspetivo, que dá as mãos a "Ninguém Tropeça nos Dias", em jeito de espiral. É como aterrar o avião de forma a que ele fique a postos para nova descolagem. Um álbum feito para tocar em loop e próprio para concertos dignos de grandes salas, largos palcos e públicos fanáticos.
Turbo Lento tem conta, peso e medida. Não é um hiato, não é um cordão umbilical que se corta. É um trabalho lapidado que, por um lado, prorroga algumas das marcas registadas de Linda Martini e, por outro, instaura novos rendilhados, novas manias. Turbo Lento é menos directo que Casa Ocupada, mas mais completo. Hélio Morais esgueira-se dos holofotes e não se faz ouvir tanto, talvez por se estar a guardar para as prestações ao vivo. As palavras, as guitarras e as linhas de baixo de Cláudia Guerreiro são agora mais nítidas. Esta é também uma nova página na história decenária dos Linda Martini, uma vez que assinaram pela primeira vez com uma major, a Universal.
Mais guitarras, mais rasgadelas, mais distorção e mais efeitos vocais só podem resultar em mais barulho. Porém, este é um dos casos que revoga a teoria que diz que o barulho é ruído ou confusão. Origins, novo álbum dos God is an Astronaut, foi esta quarta-feira apresentado no TMN ao Vivo, em Lisboa. Ao contrário do que é habitual nas actuações dos irlandeses, desta vez não houve direito a projecção. Também não foi isso que os impediu de proporcionar um abalo sísmico, de alta magnitude, durante hora e meia. Uma autêntica viagem ao espaço.
Até certo ponto, consegue perceber-se o porquê do cepticismo em torno de bandas de cariz instrumental. Ainda assim, ver God is an Astronaut ajuda a deslindar este mito. É verdade que não temos o mapeamento das letras, nem a sugestividade que a riqueza tímbrica impregna, mas a comunicação musical não se pode resumir a isso. A adaptação leva o seu tempo, no entanto, damos por nós a interpretar a mensagem veiculada nos riffs e nas dinâmicas da banda irlandesa. A gradação das intensidades rítmica e sonora incumbe-se de fazer o trabalho que é, por norma, encargo das letras. De repente, em combinações de acordes, começamos a ler palavras, frases, estórias.
À medida que nos mostravam Origins, iam revisitando os álbuns mais antigos, com especial insistência em All is Violent, All is Bright. "The Last March", "Calistoga", "Transmissions", "Exit Dreams" e "Reverse World", temas do novo disco, testemunharam acerca da magia infinita dos sintetizadores e dos vocoders. Melodia e voz são constantemente filtradas, obtendo-se um som profundamente ficcional. O experimentalismo é a pedra-de-toque de Origins. É possível serrar presunto e partir a loiça toda com classe e etiqueta. Esta sonoridade é um corpo em que cada membro ganha vida própria. Mesmo com os novos níveis de distorção, os trechos são limpos e perfeitamente detectáveis. Por essa razão, não há qualquer promiscuidade. Eis o post-rock mitigado (sem nunca deixar de o ser) dos God is an Astronaut.
O público delirou com temas como "All is Violent, All is Bright", "Fragile" e "From Dust to the Beyond", esta última propositadamente embrulhada e dedicada aos presentes. Apesar de raras vezes vermos as suas caras, cobertas pelos longos cabelos que esvoaçavam em harmonia, o quinteto irlandês não escondeu a sua identidade marcadamente compadecida e até espiritual. Contaram-nos, por exemplo, que "Forever Lost" havia sido escrita em 2003, em homenagem a um ente próximo que partira. A maioria dos temas tem a particularidade de sondar emoções, sensações e pensamentos. As semelhanças da estrutura musical de God is an Astronaut com a estrutura de um filme thriller não se perderam em Origins, apesar de mais diluídas. A frase «Isto está calminho demais para o meu gosto» é quase sempre seguida da «Devia era ter estado calado».
Perto do final, Torsten Kinsella (vocais e guitarra) puxou dos galões e gritou: «Queremos ver-vos enlouquecer!». Desde então, a plateia soltou-se. À boa maneira dos astronautas, os saltos constantes pareciam enunciar uma gravidade zero. Pediram-nos que posássemos para a foto e agradeceram em bom português. A noite terminou com "Route 666".
Fotografias por Débora Lino.
Toda a gente já viu um polvo, vivo ou morto, em alto mar ou no prato banhado em azeite. Mas nem toda a gente viu um polvo que tocasse mil instrumentos e cantasse. Ontem à noite, eu e as cerca de 700 pessoas que lotaram o Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, fomos os felizes contemplados. David Santos, Noiserv, trouxe à luz o seu novíssimo álbum - Almost Visible Orchestra. Não foi por acaso que os ingressos (grátis) que havia para levantar se esgotaram passadas poucas horas da abertura da bilheteira.
Noiserv abriu com "Mr. Carousel", tema do seu primeiro EP. Ao seu lado, dobrada sobre uma secretária, estava Diana Mascarenhas, entregue ao desenho digital, que era projetado numa tela atrás de ambos. David Santos rapidamente deu com a língua nos dentes, confessando-se nervoso. «A sala é bonita, mas assusta. Mas está tudo bem, o Porto até estava a ganhar e tudo.» Provou que a apresentação de um álbum não tem de ser um momento de pompa e circunstância, desde que a linguagem enunciada seja facilmente traduzível pela audiência. Não poderia ter corrido melhor.
Os temas de Almost Visible Orchestra começaram a surgir, quase sempre intercalados com outros dos discos anteriores. Afinal, como ele próprio disse, este disco só é novo porque outros o antecederam. Não abandonando aquilo que o distingue, adopta neste trabalho um registo mais geométrico, com menos insistência no preechimento instrumental e mais enfoque na estrutura. "Today is the same as yesterday, but yesterday is not today", primeiro single, é a cara dessa ligeira transformação. "I was trying to sleep when everyone woke up", por sua vez, privilegia os vocalizos e o entrosamento das diferentes intensidades da voz. O certo é que os recursos de Noiserv são cada vez mais ilimitados e a sua capacidade para dar vida aos objetos cada vez mais sublime (até uma pistola de videojogos utilizou para adocicar uma música).
Atrelado, de início ao fim, a um pequeno banco, o cantor e músico, que também faz parte do grupo You Can't Win, Charlie Brown, desdobra-se de forma quase fantasmagórica, para conseguir amestrar todo o set que o rodeia. Muitas vezes, antes de introduzir os temas, deambulava em discursos amedrontados e pouco eloquentes, o que lhe valeu um sem-número de gargalhadas da plateia. Precisava de afinar isto e aquilo, de remendar o megafone que deixou de funcionar a meio do concerto, de contar um episódio sobre a música em questão, ou de fazer um agradecimento em post-scriptum. Mas foi a forma simples e alienada como o fez que seduziu o São Luiz. No fundo, tudo era um resultado da sua timidez em público, nomeadamente as dezenas de vezes que coçou a cabeça enquanto falava.
O seu minimalismo recorda-nos, em parte, os islandeses Sigur Rós. Os títulos das músicas são tudo menos títulos de músicas, porque são tudo menos sucintos. Mas têm piada. E ficam na cabeça. "It's useless to talk about something bad, without something good to compare": monstruoso, mas totalmente acertado. "Don't say hi if you don't have time to a nice goodbye": colossal, mas elucidativo. Trabalhar com loops não é algo que tenha tanta ciência quanto isso. Compôr trechos isolados de melodia também está ao alcance de muitos. Mas, encontrar um ponto onde todos esses trechos se intersectem, sem haver desfasamento na harmonia, exige outro tipo de skills.
Uma encosta esverdeada, um rio sem foz à vista, um arranha-céus donde saltavam pessoas para cima de um balão de ar quente, que era avistado por uma pequena população, em formato formiga e rodeada de muitas árvores, uma composição amovível. Subdividido por seis quadrados, este foi o resultado final do desenho de Diana Mascarenhas. Pegou no rato do computador, arrastou dois ou três quadrados, mudando-os de posição. De queixo caído, lemos "N-O-I-S-E-R-V" escrito nos contornos salientados. Os desenhos, esses, eram simultaneamente primários e complexos. No fundo, em alusão às composições musicais de Noiserv. David Santos ainda nos abandonou duas vezes, mas as ovações de pé convenceram-no a regressar e terminar com «a música mais pequena» que fez até hoje. Álbum apresentado. Mais fãs conquistados.
Fotografias por Rita Sousa Vieira
Depois de uma noite em que os timbres portentosos e opulentos foram cartão de visita , a segunda noite do Festival Caixa Alfama trouxe-nos um perfume menos activo, mas daqueles que fica na roupa durante muito tempo. Um perfume cuja essência se baseou em três elementos: a amabilidade de Raquel Tavares, a frescura de Cuca Roseta e a alegria de António Zambujo. Para infortúnio do espectáculo, ontem o Palco Caixa não teve casa cheia e a contenção do público foi superior à da noite anterior.
Em momento algum, Raquel Tavares escondeu o seu bairrismo profundo, até porque sentiu que a plateia assinava por baixo de cada vez que o expressava. Afinal de contas, estava totalmente em casa e tinhas razões mais do que suficientes para andar à sua vontade. Para além de elevar constantemente o seu nicho alfamista às nuvens, a fadista mostrou grande reverência para com o público feminino, ao qual dedicou alguns dos temas entoados, procurando ao máximo a cumplicidade da sua assistência. Foi prazeroso ver a sua versatilidade, ao pegar na guitarra uma ou outra vez e aventurar-se sem o amparo dos seus músicos.
Aventureira também foi Cuca Roseta, que pôs os trunfos na mesa logo desde início, ao abrir a capella, curiosamente, com "Rua do Capelão". As palavras eram tão melosas quanto a sua voz angelical: viver abraçada ao fado, morrer abraçada a ti. Parecia maravilhada com o ambiente ao seu redor e reconheceu que «para os fadistas este é dos cenários mais bonitos do mundo para se cantar». Cuca Roseta foi transparente quanto à sua admiração por Amália Rodrigues, à qual dedicou um fado da sua própria autoria, a "Marcha da Esperança". De Amália, cantou "Porque voltas de que lei" e "Foi Deus", onde se tornaram bem perceptíveis a sua longura e afinação vocais. À semelhança da primeira noite, houve também oportunidade para desfrutar da individualidade instrumental. Num registo por vezes algo auto-biográfico, Cuca Roseta trouxe-nos um fado cujas composições lírica e melódica foram inteiramente da sua lavoura, o seu primeiríssimo fado "Nos teus braços". O momento ideal para algum enamoramento no seio do público.
António Zambujo foi o último a subir ao palco. Sim, já não restam dúvidas, é mesmo possível manusear a guitarra tão fluentemente e ter, simultaneamente, tão grande disponibilidade para cantar. De facto, "Algo Estranho Acontece" com este sujeito. Atrevido, sem ser grosseiro. Manso, sem ser monótono. Brincalhão, sem ser decadente. Não há como ficar inerte perante o lirismo dos seus versos. É sempre encorajador perceber que o público para o qual cantamos está atento às palavras que são proferidas. Ontem, isso aconteceu inúmeras vezes, que o testemunhem todos aqueles que soltavam uma gargalhada de cada vez que Zambujo dava por concluídas as suas narrativas musicais. É disso que se trata o seu fado: episódios consuetudinários, lengalengas apimentadas, idas ao confessionário. Zambujo não precisa de rimar para gerar concórdia. O seu arsenal é composto pelo sugestividade da aliteração e pela imprevisibilidade do vocabulário. Para o resultado ser estonteante, basta simplesmente adicionar uns gramas do seu sorriso glamoroso e cativante.
Supreende-o mais a ele do que a nós o facto de o público dominar com distinção as letras das músicas: «Também sabem cantar esta?!», perguntou enquanto tocava "Lambreta". Brindou-nos com peças de um cancioneiro da velha guarda: Dá-me uma gotinha de água, dessa que eu oiço correr, entre pedras e pedrinhas, alguma gota há-de haver. E sacou-nos alguns assobios para abrilhantar "Eu ia pela Rua". Os ânimos acaloraram quando tocou "Flagrante" e "Zorro". Além da guitarra portuguesa e do contrabaixo, fez-se acompanhar dos clarinetes de José Miguel Conde e do trompete de João Moreira, que adocicaram ainda mais o seu fado. Um festival que terminou com chave de ouro. Venham mais!
Fotografias por Rita Sousa Vieira
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